O dia em que visitei um matadouro

É muito parecido com isso. Sem brincadeira.
Finalmente aconteceu: hoje eu passei a manhã inteira conhecendo a linha de produção do frigorífico - ou, se preferir, um matadouro.
Eu achei que fosse ficar bem mais horrorizado, mas no final da manhã eu estava tão bem quanto entrei no lugar - e ainda bati um pratão de carne no almoço. O que acontece dentro do matadouro é realmente hardcore, mas aparentemente eu estou dessensibilizado pra essas coisas. Talvez por causa da internet e seus goatses, tubgirls e 2girls1cups da vida.
Eu poderia escrever zilhões de linhas sobre o, er, "passeio", mas vou tentar resumir: O começo do "tour" foi pela parte de abate e desossa, onde matam, esfolam, retiram as tripas e esquartejam o boi, mais ou menos como contei no meu post anterior. Se essa descrição já parece medonha, a primeira visão disso é bastante desconcertante: imagine um galpão de paredes amareladas e pé direito bem alto. Do teto, do meio das incontáveis tubulações que sobem e descem, corre um longo trilho que ziguezagueia pelo local inteirinho, e é nesse trilho que o boi circula, pendurado pela pata traseira direita, enquanto é esfolado e picotado aos poucos. Cada carcaça fica a mais ou menos 1 metro de distância da outra e, no chão, ao redor delas, CENTENAS de pessoas cortam, picam e arrancam pedaços do boi. É muita gente, é mais ou menos como uma agência bancária às quatro da tarde.
"Cuidado que tudo aqui escorrega muito", disse a gentil engenheira que se ofereceu para fazer o "city tour" comigo. Ficou fácil entender o porquê: uma quantidade imensa de sangue que está por todos os lados, o tempo todo. Some a isso a água que é usada para lavar a carne, as facas e os equipamentos e você tem uma lambança permanente no chão. E o pior é que, para chegar ao começo da linha de produção, você acaba tendo que passar pelo meio das carcaças. Matadouro é assim, bobeou e o boi tromba em você.
Depois de desviar de algumas dezenas de carcaças, finalmente cheguei ao chamado "box de atordoamento" - um compartimento onde o boi entra para levar uma paulada pneumática na cabeça e ficar inconsciente, ou seja, o começo do fim. E eis que um dos engenheiros-chefe estava lá também. Ao saber que eu estava visitando o abate pela primeira vez, despejou logo suas palavras de motivação:
- Ô rapá! Não vai desmaiar aí hein!
Nem foi por nada que ele disse, mas quando vi o capataz abrir a porteira para colocar um dos bois pra dentro, confesso que meu coração disparou: eu estava prestes a ver uma execução.
E o pior: a razão do engenheiro-chefe estar ali era porque eles fariam o abate de novilhos - sim, boizinhos jovens, com a vida inteira pela frente. O primeiro deles entrou no box meio desorientado, e então umas barras metálicas surgiram das laterais e prenderam seu pescoço. Aí o operador pegou um martelo de ar comprimido, mirou bem no meio da cabeça dele e POU!
Até então eu estava tranquilo, porque no meu entendimento o boi saía desmaiado daquele ponto em diante e não sofria mais. Então, de trás do box, surgem de repente dois bois pendurados... um deles chutando e se debatendo como louco.
"É só reflexo", disse a minha colega engenheira. Mas não é uma cena bonita, especialmente porque logo depois um cara faz uma incisão bem na barbela do bicho (aquela pele que fica pendurada debaixo do pescoço) e, de repente, dá uma estocada no meio do corte. Pega direto na jugular. O sangue não simplesmente começa a sair: ele jorra, em quantidades dignas de filme do Tarantino. E o boi lá, ainda se estrebuchando.
Mas a pior parte do "se estrebuchando" veio depois. Eu estava em frente a uma esteira cheia de bandejas enormes de inox, todas cheias de vísceras: estômagos, pulmões, fígados, tudo lá. O estômago de um boi é uma coisa simplesmente ENORME, é grande feito uma almofada de sofá. E então a coisa começou a se mexer sozinha na bandeja. Era pra ser horripilante, mas eu olhei aquela bolsa esbranquiçada se contraindo e estava até achando engraçado. Aí a engenheira aponta pra trás de mim e diz:
- Isso é porque você não viu como fica a cabeça...
Atrás de mim passavam as cabeças dos bois, sem os chifres, sem os olhos, com o couro removido e a carne toda exposta. E todos os músculos da face do boi se contorciam. Era bizarro... e incrivelmente comum, tanto que, no andar de baixo, onde o pessoal processa os miúdos do boi, eu olhava para as bandejas de carne e ainda via alguns pedaços se mexendo.
Daquele ponto em diante as coisas ficam bem menos nojentas, mas bem mais frias e fedidas. Frias porque as áreas onde processam a carne e os miúdos tem temperatura controlada, e fedidas porque... bem, digamos que você nunca vai querer visitar uma bucharia (onde os intestinos do boi são abertos e lavados) ou uma graxaria (aonde todos os restos de ossos e carne são jogados, moídos e transformados em sebo e farinha).
Já a desossa é outra história: esse é outro hall enorme, cheio de gente, com esteiras enomes e todo mundo armado com facas. É ali que a carne é separada da carcaça e finalmente ganha cara de carne de comer, com os cortes certinhos e tudo o mais. Confesso que naquele ponto, vendo aqueles nacos enormes de carne fresquinha rolando pelas esteiras, eu fiquei... com fome.
Esse não foi o único pensamento idiota que tive ao longo do passeio. Uma coisa que não me saiu da cabeça é o tanto que o abatedouro se parece com a versão clássica do jogo Doom. É sério, a figura que ilustra esse post não foi colocada ali por acaso, é MUITO parecido - bichos com as tripas de fora, sangue pra tudo que é lado, pedaços de corpos dependurados, etc.
E para encerrar numa nota mais filosófica, confesso que eu esperava ansiosamente pela hora de visitar o matadouro. Mas não porque eu queria ver sangue, e sim porque eu queria ver como EU reagiria ao ver aquilo tudo. Viver essas situações extremas de vez em quando é bom, porque nessas horas é que o seu "eu de verdade" aparece. Não tem como se esconder atrás de nada: nenhum estereótipo social, nenhuma saidinha política, nem nada: é você, com o que você é. E minha indiferença com a coisa toda foi um tanto quanto preocupante...