Prólogo

Um post desse blog que eu gosto muito foi o dia que documentei uma pedalada de 46km na ciclovia da Marginal Pinheiros.

Treze anos depois e eu ainda morro de saudades da minha Caloi 10 da época, mas minha situação ciclística melhorou substancialmente. O subúrbio onde moro tem inúmeras trilhas pra percorrer. Eu moro aqui faz quase oito anos e ainda acho trilha nova e legal pra pedalar. Tem altas “passagens secretas” entre as casas que é impossível descobrir de carro. Outro dia achei uma pontezinha sobre um córrego, com uma árvore decorada por inúmeras casinhas de passarinho, parece coisa do Senhor dos Anéis. E não podemos esquecer o salto que foi sair do, digamos, aromático Rio Pinheiros, e vir parar na orla do Lago Ontário.

Enquanto o blog estava “aposentado”, nunca tive a chance de repetir/atualizar o post. Recentemente, voltei a fazer exercícios regularmente, e já haviam rolado pedaladas dignas de post… mas tinha uma em especial que era basicamente um sonho, uma que eu queria muito completar pra, finalmente, poder documentar por aqui: ir da porta de casa até o centro de Toronto. São uns 50 km, em trilha oficial, meticulosamente documentada e sinalizada, graças à uma fundação que mantém a coisa toda.

Eu passei muito tempo sem coragem de encarar essa. Pensava: “vai doer”, “é mais chão que as pedaladas da Marginal”, “eu já passei dos quarenta”, e outras crenças limitantes. Aí terça passada eu olhei a previsão do tempo e, pra sábado, tava céu claro e 15 graus - condições perfeitas pra pedal. Se passasse de setembro, ficaria frio/chuvoso demais (aqui é outono), e aí só ano que vem. Então, pedi um “vale-tarde” pra Bethania, planejei tudo, enchi a mochila de água e carboidratos, enchi os pneus e, meio-dia, comecei a pedalar.

Bicicleta na porta de casa

Primeiros 11km

Me sinto: Empolgado.

Dores: Nenhuma.

Essa é a parte bonita, mas “sem graça” do trajeto, porque é o trecho entre minha casa e a beira do lago, e é composto das trilhas que eu já percorri inúmeras vezes. Mas eu estava absolutamente pilhado.

O bom da depressão (oi?) é que você acaba ganhando experiência em entender o seu humor cada vez melhor, e uma coisa bem óbvia no meu caso é que, quando tudo que eu penso tem um viés negativo, o negativo é o meu humor, e não a realidade. Essa sacada têm me ajudado muito a lidar com dias de humor ruim. Hoje em dia não estou mais no antidepressivo, reduzi bastante o CBD, então estou segurando a onda com exercícios e com um monte de outras estratégias que a psicóloga recomendou. Uma delas é contato com a natureza… coisa que o cético aqui jamais levaria a sério, já que parece coisa de hippie nova era. O problema é que isso passou a funcionar tão bem comigo que até irrita: outro dia fiquei cinco minutos na beira do lago ouvindo as ondas batendo nas pedras e a diferença que isso fez no meu humor foi tão absurda que deu raiva. Aí nem sei o que faço, vou pro lago de novo pra passar a raiva de ter ido pro lago? 1

Mas a maior de todas as sacadas da psicóloga (Dra. Susanne, tu é foda) foi uma que eu batizei de “alegria forçada”. A teoria é que, essencialmente, não tem como você ficar bem pela força do pensamento; a ordem correta é você mudar o seu estado de humor, e os pensamentos acabam acompanhando. Existem vários jeitos de forçar a alegria - exercício é um deles - mas um que descobri que funciona bem comigo é… música. No início, parece que você está meio que botando uma calça jeans ao contrário no seu cérebro, se sentindo péssimo enquanto, nos fones, tá aquela festa… mas se você persistir, a vibe da música acaba tomando conta. Na semana antes de sair pra pedalar, eu tive um dia particularmente difícil, botei os fones pra ver se melhorava, mas acabei exagerando na dose. Resultado: passei horas fazendo uma playlist só com as mais antidepressivas, as músicas mais animadas de toda a minha história.

Como você já deve ter imaginado, era essa a playlist que eu havia botado nos fones pra essa pedalada…

Do km 11 ao km 22

Me sinto: Grato.

Dores: Ainda nenhuma.

Eu engordei um tantão no pós-COVID: ganhei todo o peso que havia perdido nas minhas últimas jornadas fitness, mais um extra. Cheguei a bater 95kg em março desse ano. E, mesmo sem beber, ainda teve o brinde do fígado gorduroso que saiu nos meus últimos exames.

Em Maio, como presente de aniversário pra Bethania, eu inscrevi a família toda numa academia premium que tem aqui perto de casa, que eu sempre detestei, mas que ela sempre quis frequentar. É um prédio enorme de três andares, tem uma área kids com monitores pra olhar o Tom, tem duas piscinas, sauna, yoga, pilates, as firulas todas. O Tom detestou o espaço kids. Bethania vai só no final de semana por causa de trabalho. E eu, por algum motivo, agora vou praticamente todo dia. O bichinho me pegou tanto que, no final de agosto, tiramos uma semana de férias, viajamos 1500km de carro, trocando de hotel várias vezes, e eu me peguei acordando às 5:50 da manhã pra dar uma caminhada, ou usar a academia do hotel. Aos quarenta e com filho, dá trabalho, mas alivia bastante a chatice da “idade do condor” (com dor ali, dor aqui, etc). E já se vão uns 7kg perdidos nos últimos 9 meses.

Com todo esse preparo, eu já estava passando por Pickering, a cidade vizinha, ainda com gás no tanque. Inclusive, a orla do lago em Pickering é especialmente nostálgica pra mim, porque é exatamente o lugar onde morei em 2005, quando passei seis meses num projeto da consultoria. Nunca nos meus sonhos mais malucos eu imaginei que a minha vida de 20 anos depois seria naquele mesmo lugar. Gente nasceu, gente morreu, carreiras, amizades, casamentos, tanta coisa começou e terminou e recomeçou em duas décadas. A então namorada da época hoje é a mãe do meu filho, e somos todos canadenses, e sei lá o que seremos nos próximos 20 anos. A vida é mesmo louca vida, e é breve. Melhor continuar pedalando e ver o que vem na próxima curva.

Bicicleta parada no peitoril da passarela sobre o Rouge River

E o que vem é, de longe, uma das partes mais bonitas do trajeto inteiro: você cruza parque atrás de parque, passa por marinas e playgrounds e, de repente, chega na região do Rouge River - quase dez quilômetros de trilha a apenas alguns metros da beira do lago. Eu vejo essa trilha todo dia útil, da janela do trem, e é sempre a hora de largar o celular e admirar o nascer e/ou pôr do sol reluzindo sobre a água. Hoje foi um dia de ventania, então o lago estava bravo, com ondas batendo nas pedras, a ponto de você sentir o ocasional respingo de água no rosto. “Caralho. Isso é muito bonito”, pensei, deseducadamente.

A trilha termina numa estação de tratamento de água que, coincidentemente, é também o lugar onde a trilha some de vista da janela do trem. A partir dali, tudo seria novidade. Liguei o GPS do telefone: era hora de pedalar onde nunca pedalei antes.

Do km 22 ao km 41

Me sinto: Confiante.

Dores: …nenhuma?

Essa foi a primeira hora que o gás deu uma reduzida, mas eu estava muito bem preparado: na mochila, eu trazia uma coleção de barrinhas e gels de maltodextrina (carboidrato de rápida absorção), e sabia exatamente quanto precisaria comer por hora pra não ficar sem combustível. Para hidratação, uma daquelas bolsas de água de dois litros que você bota na mochila e bebe por uma mangueirinha, e também água de coco numa outra garrafinha, pra repor os eletrólitos. Fiz um lanchinho em movimento e, logo logo, estava bem novamente. A playlist, então, estava absolutamente em chamas, o que foi meio que um problema porque eu havia planejado parar em algum momento pra descansar. Mas o pedal estava rendendo tanto e eu me sentia tão bem que estava difícil pegar leve.

Falando em playlist, teve uma hora que ela começou a tocar uma música repetida… e eu dei uma boa risada ao reparar que aquele era, provavelmente, o pior problema que eu havia tido até então. Nessa vida eu já passei muito perregue, e os últimos anos de depressão não foram nada fáceis, então eu aceito de muito bom grado uma música repetida num dia bom daqueles. E fiquei duplamente feliz ao reparar na minha própria reação positiva, sintoma de que o meu humor ia muito bem. Isso ainda é raro, então tenho que aproveitar.

Bicicleta parada numa trilha próxima aos Scarborough Bluffs

Outro “problema” foi que, nesse trecho, a trilha desaparece e você acaba tendo que pedalar na rua mesmo. Apesar de ter revisado a rota no Google Maps inúmeras vezes, foi aqui que eu cometi um erro de planejamento. Eu não me toquei que, pro Google, tudo é trilha… inclusive trilhas de cascalho, terra e grama. E minha bicicleta é pra asfalto. Imagina a minha decepção ao entrar num parque e a trilha mudar de asfalto pra terra… depois pra grama… depois pra uma buraqueira impedalável no meio do mato. E o pior: 99% do trajeto é plano, mas a buraqueira era, obviamente, numa das raras subidas. Ainda me lembro da perplexidade na cara da família que levou o cachorro pra passear na trilha e deu de cara com um ciclista completamente perdido na floresta, empurrando sua bicicleta morro acima.

A boa notícia é que eu sabia que aquele ponto da trilha significava que dois terços do caminho já estavam pra trás.

Quando estava decidindo sobre fazer ou não essa trilha, eu pensei muito em como eu iria reagir se não desse certo. Eu podia não aguentar o esforço, podia furar um pneu, eu podia levar um tombo - que foi como quebrei o cotovelo há alguns anos. Uma das coisas que não me deixou desistir foi que, se a qualquer momento algo desse errado, eu estaria sempre próximo da linha do trem, e era só me arrastar até a estação mais próxima e ir pra casa. E, na pior das hipóteses, eu ganharia experiência pra tentar no ano seguinte. Mas eu me sentia muito bem, com energia, sem dores e, naquela hora, muito próximo de completar a pedalada dos sonhos. “It’s in the bag”2, pensei.

Do km 43 ao km 50

Me sinto: Tranquilo.

Dores: Nenhuma, o que é excelente ou preocupante.

Eu já estava ficando de saco cheio de pedalar na rua, então me animei ao ver que, finalmente, a trilha voltaria pra beira do lago. O GPS me mandou numa rua sem saída e, no fim dela, tive uma chegada cinematográfica na… praia?

Woodbine Beach

Essa praia de Toronto eu nem sabia que existia: Woodbine Beach, no bairro chamado “The Beaches”. Até então, o sonso aqui achava que os nomes eram só figurativos…

Setembro é mesmo o “verão escondido” do Canadá. 15 graus, mas com sol, a praia estava bombando: gente fazendo kitesurf, piqueniques por toda parte, sorveteria lotada, e uma raridade: gente soltando pipa. Quando passei da praia, cheguei à uma ciclovia que me parecia familiar, demarcada com faixas coloridas que eu já havia visto antes. De repente, lembrei: é a ciclovia que vejo todo dia, da janela do trabalho. Era a confirmação de que eu estava, de fato, na etapa final. Chequei as pernas: ainda boas. Não tinha erro. Aquele era o final da pedalada.

E que final: a trilha entra no parque Tommy Thompson e volta a ser completamente no meio do mato por uns cinco quilômetros. Mas a trilha é numa península sobre o lago, então, quando você sai dela, chega de frente pra Toronto, essencialmente pedalando em direção a um cartão postal com a CN Tower e todos os prédios do centro da cidade, e ainda por cima (pun intended) passando pela nova ponte moderninha da Cherry Street - ponte que sempre via da janela do trem, chegando pro trabalho, e sempre quis conhecer. Cruzei a ponte gritando igual um maníaco.

A foto abaixo é roubada do Flickr porque jamais que eu ia parar pra fotos naquela altura do campeonato.

Ponte nova da Cherry Street (foto roubada do Flickr, foi mals)

5 últimos quilômetros

Me sinto: Vitorioso.

Dores: Pernas em CHAMAS.

Quando você sai do parque a trilha, subitamente, fica lotada: turistas desavisados, entregadores de comida (como chama o motoboy de bicicleta? Bikeboy?), casais passeando tranquilos sem perceber que estão ocupando duas faixas da ciclovia ao mesmo tempo, gente botando compra do carrinho de supermercado no Uber… mas não reparei muito por dois motivos:

  • Puta que pariu, eu tou completando a trilha, e
  • Puta que pariu, minhas pernas estão ARDENDO pra caralho

Nunca havia sentido as pernas ardendo daquele jeito. Não parecia ser esforço, porque eu ainda tinha gás. Talvez tenha sido o selim desajustado que apertou algum nervo, sei lá. Mas estava feliz que elas resolveram reclamar só no finalzinho. Foi a conta de chegar, desmontar da bike, sentar nas cadeiras em frente ao lobby do prédio, e absorver um pouco do que tinha acabado de acontecer.

Cansado, ardido, e realizado, andei até a estação e peguei o trem de volta pra casa.

Mapa do trajeto completo

Tempo total: 3 horas e 3 minutos

Distância total: 55,5 quilômetros

Velocidade média: 18 km/h

Frequência cardíaca média: 150 bpm

Calorias ingeridas: 1.100 kcal (três barrinhas, água de coco, dois sachês de maltodextrina)

Calorias consumidas: 2.401 kcal


Epílogo

O final de semana seguinte tinha feriado na segunda e, surpreendendo até eu mesmo, peguei a bike de novo - mas dessa vez pro outro lado, até a cidade de Oshawa. Mas sem meta, só um bate-volta pra conhecer umas trilhas novas, e com uma pausinha no parque pra descansar. O trajeto é muito mais bonito, trilha asfaltada o tempo todo, quase não tem que pedalar na rua.

Lakeview Park em Oshawa

Na volta, uma epifania: a ida foi com vento a favor, então, quando senti o vento contra no retorno, pensei: “hmm, vai ser meio sofrido”. E aí me toquei que estava pedalando, voluntariamente, no sentido literal e figurativo, em direção ao sofrimento. Era o caminho certo, e é o que, no fim, vai fazer com que eu me sinta bem e viva melhor.

Tempo total: 2 horas e 15 minutos

Distância total: 47,5 quilômetros

Velocidade média: 21 km/h

Frequência cardíaca média: 150 bpm

Calorias ingeridas: 717 kcal (duas barrinhas, água de coco)

Calorias consumidas: 1.852 kcal


  1. Uma nota um tanto fúnebre: algum tempo atrás eu e Bethania fizemos nossos testamentos (ultimate adulting que chama). Deixei registrado lá que meu desejo final é ser cremado, e as cinzas jogadas no Lago Ontário. Em dias bonitos como esse, eu me lembro disso e penso que fiz uma boa escolha de destino final. 

  2. “Tá no papo” (um raro caso onde o português não soa tão bem quanto o inglês)